Sobre a importância da disciplina para quem gosta do que faz (pace Ali Abdaal)

Andrea Faggion
6 min readJan 7, 2024

Eu fiquei um tanto surpresa com o tema do livro do Ali Abdaal, Feel-Good Productivity, porque eu acreditava que este assunto já estava esgotado. Há quanto tempo já estamos ouvindo sobre corporações que transformam seus escritórios em verdadeiros playgrounds para adultos para aumentarem a produtividade dos funcionários? De toda forma, o livro deve estar vendendo muito, porque é um livro escrito para um público já formado. Poderia ser sobre bananas. Ainda venderia por causa do nome do autor.

O que não me surpreende é que o livro siga a fórmula do mercado para best-sellers deste gênero. Todo capítulo começa com uma anedota para nos cativar e inclui algum experimento de psicologia empírica para corroborar a moral da história. Por sinal, minha impressão é que você pode achar um experimento desses para confirmar o que você quiser. Inclusive, eu recomendo este vídeo para um interessante comentário sobre o uso desses experimentos em livros de produtividade em geral. De fato, a psicologia empírica não é uma ciência dura, ou seja, não é matematizável e, portanto, não possui leis universais. Por isso, é sempre problemático saber o que inferir de um experimento que mostre, por exemplo, que um grupo que escreveu com caneta vermelha, em média, rendeu mais do que outro grupo que escreveu com caneta azul. Você deveria trocar a cor da sua caneta por isso?

Particularmente, a citação desses experimentos como abono não tem muito apelo para mim. Eu gosto de simplesmente saber como fazem as pessoas que fazem bem feito aquilo que eu também quero saber. Então, eu seleciono, dentre essas práticas, o que me parece que poderia valer também para mim e testo para ver se me ajuda mesmo. Com a experiência pessoal, vou adaptando e criando meus próprios métodos. Como diz o autor do vídeo que eu indiquei acima, produtividade é algo muito idiossincrático. Temos sempre que ter isso em vista.

Seja lá como for, o objetivo deste ensaio nem é criticar a fórmula batida desses livros pré-fabricados. O meu ponto é que o livro de Abdaal, em particular, me parece nocivo em seus ataques à importância da disciplina. Basicamente, a tese do livro é a seguinte. Existem basicamente três tipos de motivação para realizarmos toda e qualquer tarefa. O primeiro é o que poderíamos chamar propriamente de força de vontade. Você fixa em mente o que você vai ganhar no futuro se conseguir executar uma dada tarefa no presente. A visualização do prêmio futuro o incentiva a trabalhar no presente, derrotando motivos que surgem a todo momento para você parar de trabalhar, como o desejo de assistir algo na Netflix, ficar mais tempo na cama ou jogar vídeo-game. Você sente tentação para abandonar a tarefa, que não é aprazível em si mesma, mas se força a continuar, porque, no futuro, o seu sacrifício será recompensado. Para quem estuda teoria da razão prática, podemos dizer que, aqui, se trata de sopesar razões contrárias e favoráveis à dada ação; constatar que a razão favorável, que é o prêmio futuro, é a razão mais forte; e evitar a akrasia, que é a fraqueza da vontade que consiste em agir pelas razões sabidamente mais fracas, só porque elas são mais presentes.

O segundo tipo é a disciplina. Neste caso, como diz Abdaal, vale o slogan da Nike: Just do it! Quando a pessoa é disciplinada, ela nem pensa nos prós e contras a cada vez que surge a oportunidade de praticar a ação relevante. Ela já se decidiu no passado a praticar tal ação sempre que certas circunstâncias se concretizam. Assim, quando as condições são satisfeitas, é simplesmente isso que ela faz: ela age. Voltando à teoria da razão prática, em vez de pesar os prós e contras toda vez que é possível praticar a ação, se esforçando para agir pela razão mais forte, você nem efetua o balanço de razões.

Já o terceiro tipo de motivação é o mais simples: aquilo que você deve fazer passa a coincidir com aquilo que você sente vontade de fazer no presente. Daí o título do livro. A tarefa a ser realizada não é um meio penoso para um prazer futuro e tampouco um comportamento automatizado. Você tem uma inclinação imediata pela tarefa e é por isso que a executa. Não há akrasia possível aqui, porque algo que você gostaria de fazer no presente também é o que você precisa fazer para melhorar o seu futuro.

É claro que um modelo de produtividade que promete dispensar tanto a necessidade de força de vontade quanto de disciplina pode se apresentar como um ideal bem sedutor (e vender livros). Mas eu não estou nem um pouco convencida de que devamos cair neste canto de sereia, e nem é porque eu duvido muito que realmente consigamos nos sentir imediatamente inclinados a realizar cada tarefa que compõe o que nossos empregos requerem de nós. Abdaal explica como poderíamos tornar divertida a escrita de um e-mail corporativo, além de contar como um atendente do MacDonald’s tornou divertida a venda de fast food. Para mim, até agora (ainda não li tudo), esses são os momentos mais ridículos do livro. Porém, o meu ponto é outro. Eu argumentaria que, mesmo que você realmente conseguisse tornar atraente cada atividade do seu trabalho, você ainda precisaria de disciplina. Eu falo em disciplina, e não em força de vontade, em parte, porque eu concedo que o recurso constante à força de vontade é insustentável, e, em parte, porque eu defenderei que precisamos de disciplina até para fazermos aquilo que não requer força de vontade, porque… feels good.

Naturalmente, aqui entra o que eu falei acima sobre a produtividade ser idiossincrática. Algumas pessoas são bem intolerantes à disciplina por pensarem que a vida perde a graça simplesmente por terem uma hora marcada, enquanto outras, como eu, são muito suscetíveis a cometer excessos quanto à disciplina, passando a repetir tarefas que nem fazem mais sentido, só por hábito. Portanto, não tome o que estou dizendo como a prescrição de alguma fórmula universal para você viver sua vida. O meu ponto é simplesmente o seguinte. Nós vivemos em um mundo em que diversas ações possíveis se apresentam a nós como alternativas a todo momento. De um lado, existem múltiplas oportunidades de entretenimento e distração. De outro, recebemos inúmeras demandas de trabalho todos os dias. Em um cenário de tanta pressão sobre nossa atenção, de que importa você gostar de uma tarefa em particular? Isso está longe de significar que você conseguirá priorizá-la. É aqui que entra a disciplina. Ela se torna um instrumento para você proteger o que realmente lhe importa de um mundo que, a todo instante, quer lhe desviar para a direção do que importa só para os outros, ou do que também feels good, mas importa pouco para você. Dou um exemplo.

Eu faço jogging toda manhã. Esta é a minha regra. Como toda regra, ela tem excessões. Se estiver chovendo, eu nem considero sair de casa. Mas, sendo uma regra, quando toca o despertador, eu não fico deliberando se, naquele dia em particular, não seria melhor para mim se eu ficasse na cama mais um pouco, ou, talvez, se eu meditasse, em vez de fazer uma atividade física. Mais do que isso, mesmo que eu tenha uma pilha de provas para corrigir, eu não delibero se eu não ganharia mais, só desta vez, se eu começasse imediatamente a corrigir as provas, em vez de me exercitar primeiro. E é só por isso que eu sou tão consistente no meu hábito a ponto de despertar o espanto dos meus vizinhos.

É verdade que eu gosto deste meu momento nas manhãs. Meu bairro não é especialmente bonito, mas sempre se pode ver um passarinho um pouco diferente ou notar alguma plantinha nova nascendo em algum canto. Ademais, eu gosto de ter um momento em que eu possa divagar à vontade, sem o compromisso de ter que pensar sobre um determinado problema. Mesmo assim, eu tenho convicção que, se eu dependesse do meu gosto pelo jogging, ponderando, a cada dia, se, naquele dia, vale mais a pena sair para exercer essa prática ou fazer alguma outra coisa, eu já o teria abandonado há muitos anos. Sem a proteção de uma regra mantida com muita disciplina, as urgências da vida sempre prevalecem contra o que mais lhe importa e mesmo contra o que você gosta. É assim que um pai deixa de ver o filho por um mês inteiro ou um amante do surf acaba se dando conta que nem chega mais perto do mar. Você deixa de fazer o que devia, não porque não gosta, mas porque se desorganiza e se deixa ser sugado pelos redemoinhos da vida. Agora, como a grande maioria de nós está exposta às cobranças e tentações da vida moderna, eu suspeito que alguma dose de disciplina seja recomendável. Mas eu não vou citar nenhum experimento científico. Funciona para mim como auto-defesa. Teste você mesmo na sua própria vida.

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Andrea Faggion

Sou professora de filosofia. Escrevo sobre temas ligados à ética, à filosofia política e à prática de pesquisa.