Que nota você dá para o seu dia?

Andrea Faggion
6 min readFeb 4, 2024

Eu gosto de resoluções de ano novo. O efeito fresh start é propício à implementação de mudanças desejáveis. É claro que podemos recomeçar a qualquer momento. É claro que o ano novo é apenas uma convenção social. Mas um dos defeitos da nossa cultura é justamente esse desprezo por construções sociais, como se fossemos razão pura, em vez de animais sociais. Você pode inventar que um novo ciclo começa para você amanhã, mas, dificilmente, isso terá a mesma força de um primeiro de janeiro para você mesmo.

Agora, as minha resoluções de ano novo nada têm a ver com conquistas materiais. Eu não tenho mais fins relativos ao consumo de bens ou à obtenção de alguma forma de reconhecimento. Minhas metas de médio e longo prazo na vida não consistem em me mudar para uma casa mais luxuosa ou passar a um próximo nível na minha carreira. O que eu quero é aperfeiçoar algumas características minhas, mas não para me tornar uma máquina mais eficiente no que quer que eu precise produzir. Simplesmente, como todo mundo, tenho defeitos que me fazem viver uma vida pior, assim como tornam pior a vida das pessoas que me cercam. Quero, ao menos, atenuar esses vícios. É tudo.

Por exemplo, uma das coisas que mais detesto em mim (e que mais perturba aos outros) é minha impaciência com contratempos do dia a dia. É muito ruim se irritar com coisas passageiras, como uma fechada no trânsito. Pior ainda é conviver com uma pessoa ranzinza, que fica reclamando de coisas assim. Portanto, eu tenho boas razões para querer cultivar a virtude da paciência.

Além disso, eu desconfio seriamente que a minha impaciência se ligue ao fato de eu viver correndo. Meus dias mais corridos são meus dias de menor paciência. Os momentos em que mais corro são os momentos em que tenho maior propensão a me irritar com facilidade. Cá entre nós, isso parece uma constatação bem trivial. Então, a minha segunda resolução de ano novo, mais profunda, é parar de acelerar. Eu quero viver a vida com o foco no presente, sem fazer uma coisa já pensando na próxima. Eu quero intervalos entre os eventos, sejam eles compromissos ou serviços que preciso executar. Eu quero que a duração de cada evento do meu dia seja aquela que for necessária para que ele seja levado a cabo a contento em um ritmo natural.

Agora, uma coisa que atrapalha para que eu consiga levar uma vida mais calma é minha tendência a não querer desagradar os outros. Até que já melhorei muito nisso. Todavia, ano passado, aceitei um compromisso que não será nada além de uma tortura só porque fui incapaz de dizer “não”, usando por razão o simples fato de não querer aceitar. A pessoa poderia pensar que sou preguiçosa, não cooperativa, etc., então, falei que sim, só para ficar com raiva de mim, além de me ressentir com quem me colocou nesta fria. (Como eu detesto gente que diz “o não eu já tenho” e sempre testa nossa capacidade de recusar propostas!). Bem, eu quero mudar isso. Quero ser capaz de dizer aos outros que eles vão ficar com o “não” que eles já têm mesmo. Eis outra resolução de ano novo.

Já para não ter que agradar aos outros, eu preciso levar uma vida simples. Isso se conecta ao ponto de não ter mais sonhos de consumo ou desejos relativos a status social. Quem quer demais aquilo que depende dos outros sempre terá que viver para agradá-los. Logo, eu também tenho uma resolução para não me desviar dessa decisão de levar a vida de um modo simples, reduzindo ao máximo as minhas necessidades às mais naturais.

O que eu entendo por uma vida simples e natural, algo que, por sinal, resume tudo que está acima, é que cada dia deve valer por si mesmo. Acima de tudo, eu não quero chegar ao final de um dia, pensando que ele só valeu a pena porque eu fiz um sacrifício que me aproximou de um objetivo futuro. Não. Cada dia deve ter sido um dia que tenha sido bom viver por ele mesmo. Cada dia deve ser preenchido com atividades que tenham valor intrínseco, e não sirvam apenas como meios para fins longínquos.

Ora, nota-se que eu tenho um conjunto de resoluções que me deixa com um problema. Como eu implemento essas resoluções? Como eu faço para garantir que elas não ficarão só no papel? Era isso que eu estava pensando ao final do último mês de dezembro. Quem tem uma resolução de, digamos, emagrecer, pode determinar quantos quilos quer perder e decidir se matricular em uma academia como meio. Mas é difícil saber qual seria um bom meio para garantir, por exemplo, que cada um dos meus dias seja vivido em um ritmo natural e tenha valor intrínseco.

Eu até pensei em traçar metas como “fazer ao menos um passeio ao ar livre por mês”. Mas acabei desistindo desta abordagem. Eu acabo não fazendo o passeio. Mesmo que eu faça, vivo os outros dias do mês da mesma forma indesejável. Resolvi, então, fazer o seguinte. Eu escrevi todos os valores aos quais eu queria que meus dias correspondessem na forma de resoluções. Por exemplo: “ter paciência com os contratempos do dia a dia”, “não acelerar”, “não me comportar de forma subalterna (com quem não é, de fato, meu superior)”, “fazer com que o dia valha a pena por si mesmo”, etc. Então, eu criei uma template, em um aplicativo que uso como diário digital, para atribuir uma nota para cada dia a respeito de cada uma dessas resoluções. Por exemplo, se eu xingo mentalmente quem jogou lixo no suporte dos sacos de lixo para coleta em frente à minha casa, eu já penso que, ao final do dia, vou ter que diminuir minha nota em “paciência”. Então, eu respiro fundo e procuro pensar em outra coisa enquanto limpo a sujeira que deixaram. Se eu levanto da mesa correndo após almoçar, eu penso que isso vai diminuir minha nota em outra resolução, então, eu respiro fundo novamente, e até me sento de novo, para pensar o que eu estava indo fazer com tanta pressa. Estou correndo tanto em direção a que no fim das contas? Se eu recebo um convite por e-mail, antes de responder, eu penso se eu realmente vou fazer diferença aceitando, se é algo que eu sentirei satisfação em fazer ou se cogito aceitar apenas para agradar alguém importante.

Em suma, o fato de eu ter esse sistema de notas para minha conduta me força a manter em mente os meus valores em cada pequena decisão que eu tomo. Saber que, ao final de cada dia, eu vou parar e avaliar como eu me saí no tocante a adotar o estilo de vida que quero ter tem se revelado um meio muito poderoso de implementar minhas resoluções, pois essa ciência se reflete regressivamente ao longo do dia.

Eu estou escrevendo este post agora, porque já faz mais de 30 dias que venho adotando essa prática religiosamente. Já tive tempo suficiente para me dar conta dos seus efeitos positivos. Antes de implementar esse sistema, eu não sabia quais as chances de funcionar, mas, agora, depois desse período inicial de teste, estou bem convicta de que já está funcionando. Ademais, coincidentemente, neste período, eu acabei lendo sobre uma prática do Benjamin Franklin que se assemelha demais à minha. Segundo o artigo que li, Franklin montava uma tabela em que as linhas correspondiam às virtudes que ele queria desenvolver e as colunas correspondiam aos dias da semana. Então, ele marcava os dias em que ele havia falhado com respeito a cada virtude.

Fica, então, a dica para quem também acredita neste sentido mais ético de auto-aperfeiçoamento. Eu mesma aceito sugestões. Afinal, boas intenções, como todos sabemos, não bastam. É preciso que pensemos como transformá-las em realidade se de fato as levamos a sério.

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Andrea Faggion

Sou professora de filosofia. Escrevo sobre temas ligados à ética, à filosofia política e à prática de pesquisa.