O que eu chamo de “notas permanentes” e como as escrevo

Andrea Faggion
12 min readJun 19, 2021
minhas notas permanentes

Fontes

Neste post, eu explico a parte mais essencial da minha rotina de pesquisa acadêmica: a composição e a organização das notas permanentes. Em primeiro lugar, é sempre bom deixar claro que eu não inventei o conceito de notas permanentes. Eu o aprendi lendo o livro How to Take Smart Notes, do filósofo Sönke Ahrens, que, por sua vez, o extraiu do Zettelkasten, ou seja, da caixa de notas do sociólogo Niklas Luhmann. Porém, eu digo isso só para que os desavisados saibam que não estou sendo original, e não porque eu pretenda ser fiel às técnicas usadas e ensinadas por Ahrens e Luhmann. Em outras palavras, eu trato essas fontes apenas como fontes de inspiração, enquanto adapto livremente o que aprendo nelas. Aliás, sugiro que você faça o mesmo (inclusive, com este post). Afinal, por que deveríamos ser ortodoxos e inflexíveis na aplicação de um sistema ou método cujo propósito é apenas facilitar os nossos próprios fins?

Outra fonte de inspiração para minhas notas permanentes são as chamadas “evergreen notes”, do engenheiro de software e pesquisador Andy Matuschack. No caso, Matuschack mesmo aponta similaridades e diferenças entre suas evergreen notes e os Zetteln de Luhmann, mas eu combino livremente as duas metodologias na minha própria prática.

O porquê do nome

Outro ponto que vale a pena esclarecer, para evitarmos mal-entendidos, é que a expressão “notas permanentes” não deve sugerir de modo algum que eu não altere tais notas frequentemente. Mesmo que existam fatos permanentes na realidade (uma afirmação com a qual não quero me comprometer), poucas vezes, o nosso conhecimento de algum fato possui alguma permanência. Por isso, para mim, essa terminologia significa apenas que estou escrevendo com a intenção de produzir notas que tenham valor duradouro ou indefinido para mim, por oposição a notas que só me servem enquanto estou trabalhando em um projeto em particular. Portanto, para mim, notas permanentes têm esse nome, porque são escritas para serem úteis em vários contextos futuros que não posso antecipar no momento em que as escrevo.

Por sinal, a intenção de guardar essas notas indefinidamente é uma das razões para que eu as escreva em linguagem publicável. O meu eu do futuro estará nas mesmas condições de um leitor estranho para mim no presente. Quer dizer, assim como o leitor que me é estranho agora, esse eu futuro também não saberá o que eu, no presente, tenho em mente ao escrever a nota. Portanto, quanto mais clara, completa e precisa for a nota, mais eu facilito a vida do meu eu futuro.

E já que estou dizendo que notas permanentes são notas escritas para serem úteis em contextos diversos, que ainda não podem ser antecipados, este é um bom momento para eu explicar que se trata de uma metodologia just in case, em contraposição a metodologias just in time. As últimas são aquelas metodologias em que escrevemos com rigor apenas quando chega a hora de usarmos o que estamos escrevendo fora do sistema de notas. Já em metodologias just in case, nós vamos escrevendo os insights importantes que tivermos à medida em que eles surgem, como se já fossemos publicá-los, sem nos importarmos com a utilidade imediata desse esforço. Com isso, formamos um repositório de trechos publicáveis.

Notas permanentes são autorais

Além do fato da nota permanente ser escrita em linguagem publicável, um outro elemento constituinte fundamental em notas permanentes como as uso é que elas contêm as minhas ideias, e não as ideias de outras pessoas. Claro que elas podem — e, como estou na academia, até devem — conter referências. No meu sistema, essas referências são fornecidas por links para notas de literatura nos pontos apropriados. (A propósito, eu expliquei como faço notas de literatura aqui).

link para nota de literatura fazendo as vezes de referência em uma nota permanente

Mas, ainda que notas permanentes sejam alimentadas por ideias alheias, elas contêm o que eu penso sobre essas ideias, isto é, minhas críticas ao conteúdo lido, as conexões que eu estabeleço entre esses conteúdos, relações com outros pontos do meu conhecimento, e assim por diante. Em suma, eu nunca uso notas permanentes apenas para fazer um sumário de notas de literatura, como vejo muitos fazerem.

Além de construir um repositório de ideias para uso futuro, a grande vantagem de tomarmos notas de nossas próprias ideias, em vez de apenas registrarmos as ideias alheias, reside em um fato que jamais me canso de enfatizar: só pensa com rigor analítico quem escreve. Portanto, o esforço de escrever notas permanentes nada mais é do que o esforço de pensar clara e rigorosamente, de explorar uma ideia até suas últimas consequências em busca de suas nuances, suas falhas e suas implicações.

Quem não faz uso da escrita enquanto estuda e apenas lê preguiçosamente só descobre o quão pouco sabe sobre um assunto no momento de escrever o temido manuscrito que precisa ser entregue para uma banca, um editor ou um professor. Sim, é por isso que você sofre tanto para escrever cada capítulo de sua tese. Você sofre, porque deixou para pensar de verdade apenas na última hora. E parecia que você sabia tanto enquanto lia e grifava, não é mesmo? Parecia que suas ideias eram tão boas. Pois é, dentro de nossas mentes, nossas ideias sempre parecem perfeitas mesmo. Mas só parecem. É quando externalizamos ideias por meio da escrita que as colocamos primeiramente à prova.

Notas permanentes são atômicas

Por falar no que favorece o pensamento claro e rigoroso, um dos princípios mais importantes aplicáveis às notas permanentes, que eu procuro seguir fielmente, é o princípio da atomicidade: uma ideia por nota. Se rejeitamos esse princípio, é fácil que uma nota acabe se transformando em um ensaio ou no primeiro draft de um trabalho qualquer, o que não é seu propósito. Porém, a dificuldade é entendermos o que significa “uma ideia” nesse contexto. Eu mesma tenho lutado com isso. Porém, acho que, agora, cheguei a um entendimento que me deixa confortável e, por isso, o compartilho com vocês. Eu tenho reservado uma nota para cada parágrafo publicável que escrevo. Assim, no fim das contas, escrever notas permanentes, para mim, nada mais é do que escrever parágrafos para futuros textos que eu ainda não sei como serão.

Naturalmente, você deve tratar esse conselho como uma mera rule of thumb, e não como um axioma. Algumas notas podem exigir mais de um parágrafo. Menos do que isso, uma sentença, não seria o caso para mim, dada a natureza complexa e argumentativa do meu trabalho. Na verdade, não sei se esse extremo de atomicidade poderia ser útil para alguém com um caso real de uso. De toda forma, a ideia é que você acabe encontrando um ponto ótimo entre notas fragmentadas demais e notas que já desenvolvem tantas ideias que não podem ser facilmente combinadas com outras notas. Esse ponto ótimo, contudo, não pode ser plenamente captado em uma regra. Ele será ditado por sua própria experiência, podendo variar caso a caso. Lembre-se apenas que a ideia é elaborar notas permanentes de tal forma que elas possam ser combinadas com outras notas em sua integridade. Não é bom quando um parágrafo de uma nota permanente se conecta com outra nota permanente, mas o restante dela, não. Isso indica justamente que você errou a mão ao aplicar a atomicidade, que ficou faltando nessa nota. (Falo por experiência própria.)

Seja como for, esse ideal de atomicidade das notas permanentes explica por que se afirma que esse tipo de método é “bottom up”. Em abordagens top down, partimos de uma ideia mais geral e complexa, como uma tese para um doutorado ou para um ensaio, para, a partir dessa ideia mais compreensiva, pensarmos em ideias mais específicas, que formarão as partes do texto em que defenderemos aquela ideia maior. Já nessa abordagem bottom up do método Zettelkasten, colecionamos ideias bem específicas para, a partir de suas conexões, vermos surgir um texto maior. Isso significa que hipóteses mais gerais são formadas a partir de evidências já consolidadas, o que, como diz Sönke Ahrens, reduz o viés de confirmação, isto é, a nossa tendência de selecionarmos evidências conforme elas confirmem as nossas hipóteses. A ideia aqui é que você olhe para o seu Zettelkasten de tempos em tempos em busca de hipóteses que ele seria capaz de sustentar, hipóteses que podem, inclusive, lhe surpreender.

Outro benefício da atomicidade é que, graças à empreita de separar suas ideias em unidades menores, em seus elementos, você enxerga melhor a estrutura de argumentos mais longos e complexos. Fica mais fácil discernir ou mesmo construir a estrutura de argumentos complexos, quando seus passos são separados em notas distintas. Assim, você não apenas compreende melhor o que constitui cada etapa do argumento, como também consegue isolar os pontos de maior dificuldade e as lacunas argumentativas.

Quem desenvolve textos mais longos do que um post como este sabe como é fácil se perder, misturar ideias distintas, confundi-las entre si e acabar com um emaranhado que faz pouco sentido. O princípio da atomicidade previne essa tragédia, porque permite que você olhe para cada ideia como um ponto separável e, ao mesmo tempo, localizável em uma constelação de ideias. Significa que você não apenas consegue colocar cada ideia debaixo de um microscópio, focando nela isoladamente, como consegue enxergar melhor quais são suas conexões com outras ideias. Enfim, não posso pensar em método mais favorável ao pensamento analítico, que é o ideal que orienta meus estudos.

Como dou títulos às notas permanentes

O problema da atomicidade das notas torna-se muito mais manejável quando adotamos um certo método para escolhermos os seus títulos. Quando eu penso no título de uma nota como a sentença declarativa que a nota sustenta (ou em uma frase que poderia facilmente ser transformada nessa sentença), eu entendo qual é, afinal, a ideia atômica daquela nota. Dificuldades em encontrar a sentença apropriada para expressar o título da nota me sugerem problemas com o conteúdo da nota, que deve estar confuso ou muito vago. Daí que meus títulos, cada vez mais, venham sendo elaborados com essa finalidade analítica, e não apenas organizacional.

título de uma de minhas notas permanentes

Já para favorecer a organização das notas, eu adoto um identificador Zettelkasten no início do título, antes da sentença declarativa ou seu equivalente. No caso, o software que eu escolhi para armazenar o meu Zettelkasten é o Obsidian. O Obsidian possui um plugin que, uma vez ativado nas configurações, pode ser acionado para criar notas com esse identificador, que consiste na data e horário de criação da nota. O benefício que eu vejo nisso é que posso ter a minha pasta de notas permanentes organizada pela data de criação da nota, como eu quero que seja, sem que, para tanto, minha pasta de notas de literatura deixe de ser organizada pela ordem alfabética do sobrenome do autor.

minha pasta de notas de literatura organizada em ordem alfabética

Também gosto de poder encontrar rapidamente as notas que escrevi nos últimos dias usando o “quick switcher” do Obsidian. Basta digitar o início do identificador Zettelkasten até o ponto em que me interessar, por exemplo: digito “202106”, para encontrar notas de todo mês de junho, ou “2021061”, para notas escritas desde o dia 10 de junho.

buscando notas recentes pelo quick switcher

Notas permanentes são blocos de construção

Ao falar da atomicidade, já foi inevitável tratarmos implicitamente de um outro princípio: o da conectividade. Notas permanentes são os tijolos desse tipo de construção. O seu valor consiste nas suas conexões. Isoladas, valem muito pouco. Um tijolo sozinho, afinal, é bem barato. Essas conexões são o coração do método Zettelkasten, porque o grande diferencial desse método é a recusa da organização das notas em pastas que isolam certos conjuntos de notas de outros conjuntos. Sabe quando você tem um caderno já completo, mas não lembra mais de uma única ideia que tenha anotado nele? Pois é, pastas fazem isso também. Elas serão cemitérios de ideias se você se valer delas para conectar suas notas.

Tags com palavras-chave são um pouco melhores do que pastas, porque você pode atribuir diferentes tags a uma mesma nota, sem que você precise duplicar a nota ou criar um alias dela para isso. Mas tags ainda estabelecem conexões muito tênues entre as notas e ainda permitem que as notas sejam relegadas ao esquecimento logo depois de receberem as suas devidas etiquetas. Afinal, assim como pastas ou cadernos feitos para áreas, autores ou conceitos, essas tags também significam apenas que determinadas notas têm algo em comum, por exemplo, duas notas diferentes podem ambas tratar do conceito de causalidade. Uma dessas notas pode ser sobre a filosofia de Immanuel Kant e a outra sobre a obra de David Hume. A tag “causalidade”, no caso, apenas diz que essas duas notas possuem uma marca em comum, ainda que, de resto, possam ser muito diferentes. Em contraste, os hard links, como o nome sugere, são conexões muito mais fortes. Eles formam as conexões que realmente importam em um Zettelkasten.

Um hard link é uma ligação direta de uma nota em particular para a outra. Se você usa Evernote, por exemplo, você pode copiar o link de uma nota e colar em outra nota. Isso seria um hard link no Evernote. (Boa sorte com o trabalho que isso daria.) Aplicativos mais voltados ao gerenciamento do conhecimento, como o Obsidian, implementam hard links de forma muito mais eficiente. Seja lá qual for o software de sua escolha, o fato é que o vínculo ontológico, digamos assim, entre as notas como entes particulares é mais forte do que um vínculo meramente taxonômico.

Assim como Luhmann, eu penso esses hard links como o estabelecimento de sequências entre as notas. Afinal, como eu já disse, meu trabalho é argumentativo. No meu trabalho, um parágrafo sozinho nunca prova muita coisa. Ele apenas explica uma ideia. Então, os argumentos mais desafiadores vão se construindo em sequências de notas. Uma mesma nota pode participar de diversas sequências. (Por isso, você quer que as notas sejam atômicas). Uma nota que eu escrevi hoje pode entrar em uma sequência que eu venha a elaborar só no ano que vem, ou daqui a muitos anos. Por sinal, é assim que um Zettelkasten catalisa sínteses criativas: relações não antecipadas entre diferentes ideias.

Assim sendo, a primeira coisa que eu faço ao concluir a redação de uma nota permanente é buscar com quais outras notas ela deveria ser diretamente relacionada. Isso significa que eu tenho a oportunidade de me lembrar de notas das quais eu já tinha me esquecido e até mesmo de revisá-las. Como essas notas reencontradas já têm suas próprias conexões, redescobrir uma ideia é sempre redescobrir toda uma coleção delas.

Claro, inserir uma simples tag é muito mais rápido, mas não me permite nada disso. Por isso, eu uso as tags apenas para buscar notas com as quais quero estabelecer hard links com a nova nota. Em outras palavras, eu busco sequências que já existem para que eu possa inserir nelas a minha nova nota, ou busco notas para compor com a nota nova uma nova sequência, ou ambas as coisas. Nisso, eu uso múltiplas tags, porque o Obsidian permite que eu busque por conjunções ou disjunções de tags, conforme eu julgue mais apropriado ao caso.

busca restrita, por conjunção de tags
busca mais ampla, por disjunção de tags

Obviamente, então, nem todas as notas que levam a mesma tag devem ser diretamente conectadas entre si. E, por outro lado, é possível que eu acabe conectando diretamente notas que não compartilham as mesmas tags. Em suma, eu coloco links diretos de uma nota para outra, quando eu devo ler algumas notas em particular imediatamente antes de ler a nova nota ou imediatamente depois de a ter lido. Por isso, minhas notas permanentes, muitas vezes, começam com alguma variante da frase “primeiro, ver…”, ao passo que terminam com algo como “agora, ver…”.

exemplo de nota começando por link para outra nota que deve ser lida antes dela

De vez em quando, também aparecem links diretos para outras notas permanentes no meio de minhas notas permanentes, porque eu posso ter mencionado um ponto que eu aprofundo em outra nota.

nota permanente com links para outras notas que explicam asserções feitas nela

Conclusão

É fácil notar como essas sequências de notas que vou construindo no meu Zettelkasten acabam formando trabalhos publicáveis que não foram planejados “top down”. Todavia, isso não significa que, com o tempo, eu não acabe estudando para completar essas sequências e poder retirar dali um artigo, uma aula ou uma palestra. Essa tem sido a minha experiência desde que adotei o método. Eu vejo sequências se fortalecendo entre as minhas notas e direciono o trabalho de pesquisa para gerar as notas que estão faltando nessas sequências. Durante esse trabalho, outras sequências vão sendo alimentadas e se cruzando. Assim, o trabalho no Zettelkasten é uma labuta diária, enquanto o trabalho nos manuscritos é apenas o momento da colheita quando os frutos parecem suficientemente maduros.

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Andrea Faggion

Sou professora de filosofia. Escrevo sobre temas ligados à ética, à filosofia política e à prática de pesquisa.