O libertarianismo não é meritocrático

Andrea Faggion
5 min readDec 17, 2023

Recentemente, ao comentar a eleição do novo presidente argentino, uma reportagem da BBC Brasil incidiu em um mal-entendimento bastante comum: assimilou a teoria da justiça libertária a uma forma de meritocracia. É verdade que libertários acreditam em desigualdades materiais legítimas, como afirma a reportagem, mas essa posição não deve ser explicada pela pressuposição de algum compromisso libertário com uma distribuição de riqueza baseada no mérito, como faz a reportagem. No mínimo, o libertário que quisesse fundar sua teoria da justiça em uma noção de meritocracia teria bastante trabalho conceitual pela frente.

Uma teoria da justiça segundo a qual se deve dar a cada um aquilo que ele merece está em harmonia com o comunitarismo, porque o mérito em questão é proporcional à contribuição de cada membro ao bem comum de sua comunidade. Enquanto isso, o individualismo metodológico dos libertários é avesso à ideia de que a sociedade seria uma comunidade visando coletivamente a um único fim, o seu bem.

Em vez de mérito, a ideia central do libertarianismo, como o nome diz, é a liberdade. A tese libertária é que transações voluntárias, ou seja, livres são sempre legítimas, desde que os bens transacionados também tenham sido adquiridos originariamente de forma legítima. Legitimidade, no caso, é sempre sinônimo de ausência de violência ou fraude.

Por exemplo, suponha que existam duas pessoas em situação de rua. Eu sou uma terceira pessoa, a legítima proprietária de duas casas, o que significa que eu as adquiri sem recorrer ao uso de violência ou fraude. Então, eu decido doar uma de minhas casas a uma dessas pessoas em situação de rua, a quem eu escolho aleatoriamente. A minha doação é aceita. O resultado dessa transação é que há desigualdade no meu tratamento das duas pessoas originalmente em situação de rua, resultando em uma situação de desigualdade material entre elas. Pois bem, para o libertário, essa desigualdade não pode ser protestada como injusta, mas não porque o beneficiário mereceu o meu presente, e, sim, porque, supostamente, eu tinha a legítima titularidade de um bem que escolhi livremente transferir para outra pessoa.

Tanto a meritocracia quanto o libertarianismo têm seus problemas.

No caso da meritocracia, a identificação de uma comunidade, no seio da qual ainda faria sentido falarmos em bem comum, já pode ser um problema. Dificilmente, esse seria o caso de nossa sociedade mais ampla. Seria mais natural, portanto, reservarmos o discurso meritocrático para o âmbito de comunidades mais restritas, como a comunidade científica, que, por sinal, costuma reconhecer o mérito de seus membros, por exemplo, por meio de premiações individuais. Se você fizer uma grande contribuição ao progresso da física, pode acabar laureado com o Nobel desta área. Isto é, você pode acabar tendo seu mérito reconhecido pela entrega do prêmio Nobel.

A identificação de uma comunidade, com seu respectivo bem comum, está longe de ser o único problema da meritocracia. Há também problemas de atribuição de mérito, pressupondo um bem comum. Suponhamos que o cientista X tenha feito uma descoberta revolucionária em sua área. Até que ponto esta descoberta deve realmente ser atribuída a ele, ou melhor, de que forma específica ela precisaria ser atribuída a ele para que seu mérito pudesse ser reconhecido? O cientista em questão só teria mérito se a descoberta em questão pudesse ser conectada como efeito a puros atos de seu livre-arbítrio como sua causa? Haverá alguma mancha no mérito de alguém se admitirmos que seu feito se deve, ao menos em grande parte, a um talento recebido como prêmio da loteria da natureza? E se até o esforço relativo ao cultivo de um talento natural for uma função da carga genética do indivíduo somada à criação que ele deu a sorte de receber em um determinado ambiente? E se notarmos que ninguém ganharia um prêmio Nobel de física se tivesse passado a vida em um vilarejo da África Subsaariana, por mais talento que a pessoa tivesse e por mais esforço que fizesse? Respostas a essas questões realmente afetam a atribuição de mérito a alguém? Ou é tudo uma questão de haver uma contribuição objetiva a um bem comum, contribuição esta rastreável até as ações externas de um indivíduo como sua causa mais aparente e imediata?

Seja lá como nos posicionemos no debate sobre o mérito, o libertarianismo, insisto, nada tem a ver com isso. Seus problemas, eu já disse, são outros.

Por exemplo, parece óbvio que, se eu tenho um doce, posso dar meu doce a quem eu bem entender. Se o doce é meu, faz parte dos meus direitos sobre ele que eu possa transferi-los para outra pessoa à minha livre escolha. O problema é como o doce vem a ser meu. Eu também o ganhei de alguém? Se for o caso, essa pessoa que o tinha o ganhou de mais alguém que também podia dá-lo? Ou será que o doce foi feito por mim? Ah, mas eu o fiz de quê? Como eu vim a ter aquilo de que o fiz? Ganhei de quem podia me dar?

As questões mais complicadas para o libertarianismo não são aquelas sobre o direito à transferência voluntária por parte de quem já tem a propriedade originária. O problema é a dita propriedade originária. Como e por que adquirimos coisas originariamente? Mesmo que, em princípio, possa ser legítimo passar a tratar como exclusivamente meu algo que, até então, não tinha um dono só, de que forma eu devo proceder para poder me apropriar de coisas dessa forma? Se eu pegar uma maçã do chão, ela é minha, mesmo que só tenha ficado em minhas mãos por um instante? Se eu quiser, pego-a do chão, digo que é minha, largo-a de novo, vou embora e ela tem que ficar intocada, no chão, até apodrecer? Mesmo que você esteja olhando-a com fome pelo processo todo? O quanto eu posso pegar para mim? O quanto tenho que deixar para você? E se pegarem tudo e não sobrar coisa alguma para você? Todos precisam negociar para viver, a menos que um só consiga pegar tudo de que precisa para si, mas aquele que não pegou coisa alguma, porque não havia mais coisa alguma para ser simplesmente pega, em vez de tomada, não ficou em desvantagem nessa negociação? O que aqueles que pegaram tudo devem a ele? Devem alguma coisa? E outra, mesmo que tudo possa ser pego e que saibamos como as coisas devem ser pegas para se tornarem propriedades legítimas, como sabemos se as coisas que temos foram mesmo pegas do jeito que precisavam ter sido pegas por parte de quem as transferiu para quem as transferiu para nós? Essas questões históricas, afinal, importam? Importam até que ponto? Até que ponto da história retrocedemos para checar os antecedentes de nossas posses? Até o ponto que nos interessa para podermos dizer que tudo que temos está limpinho de violência e fraude? Os sucessores dos vencedores do jogo da história ficam com tudo enquanto os sucessores dos despossuídos ficam sem nada? E quando todo um povo cansou de viajar a pé, cercou o melhor pedaço de terra do mundo e chamou de seu país? Quem ficou só com areia e pedras que se conforme?

Como se vê, a cada qual os seus problemas. Esses problemas, inclusive, não são necessariamente insolúveis. Longe disso, esses dois conjuntos de problemas são apenas o ponto de partida de teorias, algumas delas bem conhecidas, que fazem parte de duas grandes tradições de pensamento político. O que não se pode fazer é misturar essas tradições de forma tão grosseira, como foi feito no vídeo da BBC, porque isso só mantém o público desinformado.

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Andrea Faggion

Sou professora de filosofia. Escrevo sobre temas ligados à ética, à filosofia política e à prática de pesquisa.