O estoicismo de For All Mankind

Andrea Faggion
3 min readApr 24, 2021

Atenção: Contém spoilers!

“For All Mankind” – série da Apple TV+, o serviço com que a gigante da tecnologia concorre com o Netflix – não é uma série para os cínicos entre nós. É para quem acredita em virtude, ainda que não propriamente nos virtuosos.

A série me remete ao pensamento estóico, porque me parece claramente devotada a inspirar por meio de exemplos. Os estóicos, como você deve saber, acreditavam na importância de modelos de virtude pelos quais deveríamos nos guiar, como Sócrates e Cato, por exemplo. No caso, o principal modelo de “For All Mankind” é o personagem principal, o astronauta Ed Baldwin.

Ed me conquistou logo no início da primeira temporada, com seu depoimento no senado, assumindo uma responsabilidade que ele poderia muito facilmente ter transferido para um superior. Mesmo assim, ele me surpreendeu ao final da segunda temporada, com um gesto heróico, quando uma omissão teria bastado do ponto de vista moral. E o melhor é que, dadas as circunstâncias, mesmo depois do senado, mesmo depois de uma personagem lembrá-lo de que ele era o Ed do depoimento ao senado, nós não estávamos esperando a grandeza do que ele fez.

Não vou dar esse spoiler do que ele fez – acho até que já falei demais – porque o último episódio acabou de ir ao ar. Mas eu preciso dar uns spoilers para você entender o meu ponto sobre o estoicismo. O Ed perdeu o filho único, a mulher dele o traiu com um fedelho que era o melhor amigo do filho deles e… a gente queria ser o Ed. Depois das coisas que ele fez, você olha para ele com tanta admiração e respeito que não dá para não querer ser alguém assim. Você entende, finalmente, o que os estóicos queriam dizer com sua tese de que a virtude é o único bem, sendo o resto meras preferências indiferentes.

Pois é, eu sinto muito, mas Aristóteles estava errado. Há algo tão grandioso na virtude que tudo se ofusca perante ela. O que é perfeito não precisa ser melhorado. O que é completo não precisa de acréscimos.

O que quero dizer é que não importa o que a vida fez de você, se você manteve seu caráter, você a venceu e ponto. O que está fora de seu caráter, nunca foi seu mesmo. Você não pode perder o que nunca teve. Como dizem os estóicos, outras pessoas e bens materiais são apenas empréstimos que a fortuna deixa com você por algum tempo. Cedo ou tarde, ela reclama o que pertence a ela. Basta que você viva o bastante.

Já o caráter é a única coisa que nada pode tirar de você, nem depois de sua morte. E se você não consegue compreender o valor disso, eu só posso sentir muito por você. É como o Nozick dizia. Se uma pessoa não consegue entender o que ela perde ao perder o valor de seu caráter, então, ela perde mais ainda.

Talvez, esse ideal de virtude não seja humano, é verdade. O Ed é só ficção afinal. Mas os estóicos não se achavam sábios: aqueles que atingiram o ápice da virtude. O sábio estóico é justamente um modelo teórico da virtude para nos servir de norte. Ele só pode se concretizar mesmo nas lendas e na ficção. E ele precisa existir nesses recantos da nossa imaginação para nos inspirar. Outra coisa que o Nozick dizia – e o Nozick não era um estóico, mas a teoria do valor dele vem ao encontro do que digo aqui –é que você não pode convencer por argumentos que alguém ganhe ao praticar a virtude, você só pode inspirar pelo exemplo. É para isso que o Ed serve. Os cínicos têm muitas outras séries para assistir.

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Andrea Faggion

Sou professora de filosofia. Escrevo sobre temas ligados à ética, à filosofia política e à prática de pesquisa.