Liberdade sem autonomia na Sociedade do Cansaço

Andrea Faggion
5 min readMar 17, 2024

Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han expõe o que ele considera um paradoxo da liberdade. O sujeito moderno não precisa de um capataz, porque ele se auto-disciplina. Não se trata mais de uma sociedade em que somos forçados a cumprir com deveres dos quais queiramos nos esquivar. Em vez disso, temos uma sociedade de excesso de positividade. Tudo é possível. Tudo está a nosso alcance. Só precisamos nos tornar cada vez mais eficientes na execução de nossos projetos. O parodoxo existiria na medida em que isso nos levaria a auto-explorar-nos. Visamos extrair o máximo de nós mesmos, não sob ameaça de chicotadas em um tronco, mas em nome das conquistas que nós mesmos elegemos como nossos fins. Nada poderia ser melhor para o capitalismo. A produtividade se converte em virtude moral e meta pessoal.

Eu considero o diagnóstico de Han necessário e importante. Mas eu quero explorar um pouco mais esse uso do conceito de liberdade, até porque não existe só um conceito de liberdade. De uma maneira externa e negativa, podemos entender que o sujeito do capitalismo atual, convertido de empregado a empreendedor, é simplesmente livre. Ele não troca o almoço com a família por um café na mesa de trabalho, porque alguém aponta uma arma para a cabeça dele. Nesse sentido, ele não está sob coerção. Coerção, aqui, significa a ameaça de uma consequência negativa que torna uma opção menos elegível. Por exemplo, se um capataz lhe diz “ou trabalha ou lhe espanco”, ele está tornando a opção do repouso menos elegível para você do que ela era antes de sua intervenção.

Porém, não estar sob coerção externa não precisa significar ser livre em qualquer sentido razoável. Se um sujeito percebe que ele está participando de uma competição tal que, se ele não trabalhar até a exaustão, ele terá sua própria sobrevivência ameaçada — podendo se tornar, por exemplo, um morador de rua — podemos questionar se ele é livre em qualquer sentido válido do termo. Nesse caso, a liberdade é restrita pela falta de opções valiosas. Você pode jogar voluntariamente todos os seus bens ao mar para evitar um naufrágio, mas, nesse cenário, suas opções seriam tão poucas e tão ruins — ficar sem a carga ou sem a vida — que também faz sentido dizer que você não escolheu livremente jogar os seus pertences fora. Quando a sociedade é organizada de tal forma a deixar algumas pessoas com bem poucas opções e outras com opções muito melhores, faz mais sentido ainda questionarmos a liberdade daqueles que possuem menos opções. Afinal, é uma intervenção humana que faz com que as opções de alguns sejam tão restritas, e não uma tempestade em alto-mar.

Seja lá como for, Han parece estar pensando no fato de que, em nossa sociedade, mesmo os afluentes, aqueles que poderiam até se aposentar e viver o resto da vida de renda, continuam se explorando. Pense no CEO de uma grande corporação que se orgulha de dizer que acorda às 4:00 da manhã para trabalhar. Ele seria livre tanto no sentido de ter um conjunto razoável de opções quanto no sentido de não estar sob ameaça externa que lhe tolha parte de suas opções. Que mácula poderia haver na liberdade de alguém que, sem constrangimento externo e tendo opções, trabalha até não poder mais? Eu creio que poderia haver um defeito em sua autonomia.

A autonomia é uma forma de liberdade interna e positiva. Ela tem a ver com a origem dos fins que elegemos. Sei que vai parecer estranho citar o Ali Abdaal em vez do Kant agora, mas o fato é que Abdaal faz uma distinção no livro dele que me parece útil, sendo muito mais fácil de entender do que a parafernália metafísica kantiana. Trata-se de uma distinção entre motivação extrínseca e motivação externa.

Motivação extrínseca é quando você precisa de um motivo para realizar uma atividade que não provém da própria atividade. Quer dizer, a atividade em si mesma não é recompensadora. Como dizem, há coisas na vida que nós gostamos de ter feito, mas não de fazer. Talvez, você sonhe em ter escalado o Everest, mas isso não quer dizer que você não desejará estar na sua cama quando os seus dedos estiverem congelando a caminho do cume desta montanha. Nessa hora, você precisará de motivação extrínseca para seguir adiante. Todos nós precisamos de motivação extrínseca em algum momento da vida. Seria impossível termos tanta sorte assim a ponto de desfrutarmos de cada tarefa do nosso dia a dia.

Mas nem toda motivação extrínseca é externa. Motivação externa é quando você age para impressionar alguém ou para conseguir alguma outra coisa para além da boa opinião de alguém, como um pagamento em dinheiro. Por exemplo, se você quer ter escalado o Everest apenas para sair na capa de uma revista de alpinismo, sua motivação não é apenas extrínseca, ela também é externa, porque ela depende dos valores de outras pessoas. Você está fazendo aquilo que precisa ser feito para outro lhe estimar, e não aquilo que você mesmo considera de valor. Assim, quando sua motivação extrínseca é externa, você não tem autonomia.

Abdaal e Han, cada um à sua maneira, estão ambos falando das causas do chamado “burnout”. Na minha opinião, Abdaal vai até mais ao ponto quando relata que o burnout tem a ver com falta de autonomia. Não haveria paradoxo aqui, mas sentidos diferentes de liberdade. A nossa sociedade nos coloca a todos em uma corrida por produtividade. O vencedor tem como prêmio, para além de bens materiais, a admiração e o reconhecimento dos demais. No fundo, como pensadores como Hobbes e Rousseau já apontavam, todos queremos a glória, o sentimento de superioridade com relação aos demais. Acontece que o outro lado dessa moeda é nos tornarmos escravos uns dos outros. Para que nos julguem superiores, primeiramente, precisamos dançar conforme a música deles.

Assim, você se esforça para comprar uma picape de luxo para exibi-la para seus vizinhos, ou para entrar na “SanFran” para se exibir para seus amigos, e, no fundo, dá no mesmo. Tudo que você quer é que os outros lhe julguem superior. Mas o juízo é deles, e não seu. A única coisa que você pode fazer é descobrir como eles julgam e se conformar a esse juízo. Isso é liberdade, se é uma escolha não constrangida, mas é a liberdade do ratinho que continua correndo na rodinha para receber petisco. Os outros não lhe controlam com incentivos negativos, mas positivos. Qualquer pessoa que já tenha treinado um cachorro a fazer xixi no lugar certo sabe que eles são os mais efetivos.

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Andrea Faggion

Sou professora de filosofia. Escrevo sobre temas ligados à ética, à filosofia política e à prática de pesquisa.