Impressões de Graeber e Wengrow, expectativas quanto a Han

Andrea Faggion
4 min readJan 28, 2024

Em vez de ler notícias ou feeds de redes sociais, eu prefiro dedicar o tempo que seria consumido nisso a leituras que extrapolam a bibliografia do meu projeto de pesquisa, o que é outra forma de dizer que eu prefiro ler quem sabe escrever, sobre o que tem valor para além do dia de hoje. Nesses minutos catados aqui e ali, finalmente, terminei de ler The Dawn of Everything, de David Graeber e David Wengrow.

Identifico três temas centrais no livro. Um deles diz respeito à bem conhecida distinção entre sociedades modernas e sociedades tradicionais, distinção esta que, via de regra, reserva apenas às primeiras a capacidade de reflexão política e auto-determinação, considerando as últimas como sociedades fadadas à repetição cega de padrões embutidos em seus costumes. Para Graeber e Wengrow, mesmo sociedades ditas primitivas tomaram decisões políticas deliberadas quanto a seu modo de vida, assim como refletiram, à maneira do esclarecimento europeu, sobre como uma sociedade deve ser organizada.

Um outro tema do livro diz respeito à necessidade da desigualdade e de uma estrutura hierárquica estatal quando uma população cresce e sua economia se torna mais complexa, sobretudo, com a introdução da agricultura. Esta é outra tese corrente desafiada no livro. Os autores pretendem mostrar, por meio de exemplos concretos, que sociedades podem se tornam populosas e economicamente complexas sem recorrerem a uma estrutura de poder centralizado, com regras impostas de cima para baixo.

Por fim, amarrando tudo isso, Graeber e Wengrow tratam de três liberdades: a liberdade de movimento, a liberdade de criar novos arranjos sociais e a liberdade de desobedecer. Segundo eles, teria havido momentos na história da humanidade, em certas localidades, em que os descontentes podiam realmente se mudar para outro lugar e até fundar novas formas de sociedade. Porém, quando essas liberdades foram perdidas, as pessoas perderam também a liberdade de não obedecer.

O que mais me chamou a atenção desde o início da leitura de The Dawn of Everything foi a forma como os autores colocaram suas cartas na mesa. Trata-se abertamente de uma investigação politicamente interessada. O objetivo explícito dos autores é provar que “um novo mundo é possível”, para nos lembrarmos do slogan daquele fórum já esquecido. Quer dizer, Graeber e Wengrow estudam o passado da humanidade, procurando desfazer o que eles consideram como mitos sobre esse passado, para nos mostrarem que nós podemos viver de forma radicalmente diferente, sem termos que formar pequenos bandos de caçadores e coletores para tanto.

Muita gente na área de ciências sociais se sente confortável com essa orientação política explícita da pesquisa. Repetem ad nauseam que não existe mesmo neutralidade científica. Mas eu creio que devamos distinguirmos duas coisas aqui. Uma coisa é acreditarmos que toda teoria científica é axiologicamente carregada. Outra coisa é defendermos a desejabilidade de que cientistas instrumentalizem suas pesquisas para fins políticos concretos. Há uma distância considerável entre essas duas coisas.

Em primeiro lugar, do fato de toda teoria descritiva precisar de valores, não se segue que esses valores tenham que ser políticos, em vez de meramente epistêmicos. Em segundo lugar, mesmo que toda teoria científica contivesse uma moralidade política como pano de fundo ou a pressupusesse, isso ainda seria algo diferente de recomendarmos ao cientista uma atuação partidária ou a militância política. Pelo contrário, poderíamos julgar mais aconselhável, como parte da ética da pesquisa científica, que o cientista ficasse justamente atento à possibilidade de valores políticos estarem enviesando sua análise.

Por outro lado, é verdade que muitos cientistas escondem de seus leitores os seus interesses práticos, o que apenas dificulta o controle do seu viés. Então, em suma, eu não tenho ainda uma posição definida sobre a conduta de Graeber e Wengrow no livro. Simplesmente, fiquei com um pé atrás, do início ao fim. Será que outro mundo é mesmo possível, ou eles apenas querem que seja? Como não sou da área e não tenho conhecimento independente dos exemplos que eles expuseram, não posso dizer se eles distorceram as evidências para favorecer sua narrativa ou não.

Contra Graeber e Wengrow, eu tenho a impressão que outro mundo não é possível. Pode ser apenas o meu viés pessimista. Contudo, como eles, eu gostaria que fosse possível. Isso explica por que minha próxima leitura será Byun-Chu Han. Começarei por The Scent of Time. Eu não sei se terei estômago para um filósofo continental tradicional, do tipo que inventa palavras difíceis em alemão, em vez de dizer as coisas na linguagem que a gente usa no dia a dia. Mas, vá lá, a filosofia analítica que eu leio como ganha pão também não é isenta de vícios que tolero com dificuldade (mas são assunto para outro post). O fato é que, quanto ao conteúdo, Han se tornou o autor que não li mas gostei. Por isso, quero lê-lo agora.

Enquanto boa parte da esquerda, demanda que a sociedade moderna apenas seja mais inclusiva e reconheça a diversidade, eu sinto um mal-estar muito mais profundo ao olhar para tudo que me cerca. Não acho aceitável que alguém passe fome, mas também não acho que tudo ficaria bem se cada pessoa tivesse uma renda alta e não sofresse discriminação. Em suma, o problema do capitalismo moderno, para mim, é muito mais espiritual do que material. Tem muito mais a ver com a pergunta ética “como viver?” do que com questões de justiça distributiva.

Quando tudo que fazemos tem que ser justificado por um resultado extrínseco à atividade, nada mais tem uma justificativa. Tudo perde o significado, porque a cadeia de justificativas jamais é completada. A cultura moderna capitalista não passa de um culto à produtividade e ao consumo. Não há ponto final nem para uma coisa nem para a outra. Devemos produzir cada vez mais em menos tempo. Nunca podemos nos sentir saciados com o que consumimos. Nada foge a essa lógica. Se você escreve um projeto de pesquisa, ele deve ser justificado pelos resultados e impactos esperados. Resolver um problema teórico instigante, por si só, não basta em uma sociedade que perdeu a capacidade de apreciar qualquer valor intrínseco.

Enfim, suspeito que Han saberá articular muito de minha crescente aversão pela dita sociedade moderna ocidental. Se o estilo literário não se mostrar um obstáculo intransponível entre nós, esperem comentários esporádicos sobre a obra dele neste espaço.

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Andrea Faggion

Sou professora de filosofia. Escrevo sobre temas ligados à ética, à filosofia política e à prática de pesquisa.