Igualdade importa?

Andrea Faggion
10 min readDec 31, 2023

Não gostei de The Ones Who Walk Away from Omelas, de Ursulla K. Le Guin, porque não entendi o que o trabalho dela acrescenta à ideia original de uma sociedade cuja felicidade geral se baseia no sacrifício de um inocente, tal como já havia sido exposta por Fiodor Dostoievski e William James. Eu esperava de Le Guin uma narrativa construída ao redor desta ideia, ou seja, eu esperava personagens, diálogos, conflitos, contextualização, etc. Em vez disso, Le Guin basicamente repete o experimento de pensamento já conhecido, pedindo para que nós mesmos, seus leitores, preenchamos os detalhes com nossa imaginação, já que ela não se arrisca sequer a decidir o que contaria como felicidade em Omelas. Tudo que temos de Le Guin é uma criança trancafiada em um quartinho, sobrevivendo em condições subumanas, enquanto o resto da população sabe que ela está lá e, mais do que isso, sabe que sua felicidade exuberante depende de que a criança continue lá, naquele exato estado. De toda forma, o mote deste pseudo-conto me faz pensar em várias coisas.

Em um primeiro momento, me vem à mente a distinção sobre a qual Barbara H. Fried tanto insiste entre um ponto de vista ex ante e um ponto de vista ex post para avaliarmos decisões em situações de risco. Esqueçamos a criança por ora. Suponhamos que, ex ante, não saibamos quem será a única pessoa inocente sacrificada para que todo o resto da sociedade viva a maior felicidade possível para seres humanos. Digamos que isso ainda vá ser decidido em um sorteio do qual participará toda a população, cujo número não é desprezível. Assim, ex ante, cada membro da sociedade sabe que as chances dele próprio ser a pessoa sorteada nessa loteria não são muito grandes, ao passo que os benefícios para a imensa maioria que não será sorteada são os mais altos possíveis. Em suma, o risco é baixo para um prêmio alto. Talvez, isso seja o suficiente para tornar racional a participação no sorteio, mesmo que o malefício, caso o risco se concretize, também seja extremo. Não é mais ou menos algo assim que aceitamos quando permitimos que veículos motorizados trafeguem por vias que pedestres precisam atrevessar? Fried diria que, ex ante, há certeza estatística de que algum pedestre, algum dia, em alguma via, morrerá. Só não sabemos quem será, nem quando e nem onde. O ponto é que, mesmo sabendo dessa morte, nós aceitamos o arranjo, porque julgamos que, ainda que, no trânsito, sejamos todos pedestres, a probabilidade de que sejamos nós a morrer é pequena, enquanto os benefícios do tráfego de veículos motorizados para todos que não são mortos é imensa. Agora, se o arranjo era aceitável ex ante para cada um de nós, ninguém pode reclamar dele ex post, quando descobre que é ele o atropelado, ou, no caso de Omelas, o sacrificado.

Já Thomas Scanlon, como todo deontólogo que se preze, ponderaria que uma outra distinção também faz muita diferença nesses casos em que uns poucos sofrem danos para que uma ampla maioria seja favorecida. É preciso que tenhamos em conta se estamos deixando de prevenir danos acidentais ou infligindo danos sérios de forma intencional. Ainda outra possibilidade é que estejamos negando ajuda a alguém que sofre horrores para proporcionarmos pequenos benefícios a outros. Ora, no caso da permissão do tráfego de veículos automotores, apenas reconhecemos limites para a razoabilidade de nossos esforços para a prevenção de danos acidentais. Por exemplo, é verdade que não obrigamos todos os veículos do tipo a trafegarem em toda e qualquer via a, no máximo, 10km/h, mesmo sabendo que isso poderia prevenir várias mortes. Ainda assim, ninguém é morto de propósito. Já no caso de Omelas, se o dano à criança não é intencionalmente causado, no mínimo, a ajuda a ela é negada de forma deliberada. Esta é uma diferença com relação à não prevenção de acidentes que tem relevância moral.

Todavia, ao menos na versão de Le Guin, o preço da ajuda à criança não é a perda de uma mera conveniência ou de um bônus de felicidade. Em um comentário escrito posteriormente, Le Guin deixa claro que sofreríamos como a criança se a ajudássemos. Com isso, parece que até Scanlon não teria na ponta da língua a resposta quanto a termos ou não o dever moral de ajudá-la. Esse esclarecimento quanto às implicações da ajuda à criança também torna a situação de Omelas mais comparável à de um governante que quer ajudar quem, dentre seus governados, vive abaixo da linha da pobreza, mas ouve de economistas ortodoxos que as medidas que ele precisaria adotar para tanto só jogariam mais gente na mesma condição.

A princípio, que a ajuda à pessoa em situação desesperadora implique na generalização de sua condição parece ser uma informação decisiva para justificar a tolerância da população para com o arranjo social de Omelas. Talvez, a igualdade perca seu apelo como ideal moral quando ela precisa ser obtida via nivelamento por baixo. Ainda assim, há os que, como diz o título do conto de Le Guin, simplesmente vão embora de Omelas por não suportarem a situação. Aqueles que vão embora de Omelas não quebram a regra de não poderem ajudar a criança. Eles apenas desistem do jogo inteiramente, mesmo que eles se beneficiem dele. Não é dito para onde eles vão ou quais seriam as implicações, inclusive, para a criança, se todos fossem embora. Aparentemente, a ideia é que podemos (devemos?) nos recusar de todo a tomar parte em um arranjo social em que a felicidade precisa ser distribuída de forma desigual, mesmo que isso signifique a mais completa incerteza quanto a qual seria a alternativa. A situação de Omelas seria suficientemente perturbadora, do ponto de vista moral, para justificar o tiro no escuro.

Contudo, note que não é só a persistência de uma intuição moral igualitarista que é capaz de explicar nossa avaliação de que os que vão embora de Omelas é que estão fazendo a coisa certa. Dadas as condições deploráveis em que vive a criança sacrificada, algum tipo de suficientarismo, por exemplo, já serviria para tanto. Quer dizer, pode ser que o que nos repugne seja a situação da criança simpliciter, e não sua situação relativa à dos demais. Talvez, se a criança da história pudesse se alimentar, estudar e brincar adequadamente, nós não nos importaríamos se ela não pudesse, digamos, viajar para a Disney como todas as outras crianças da sua cidade. Acredito que esta seria a conclusão de Harry G. Frankfurt, dada esta tese sua:

The fact that some people have much less than others is not at all morally disturbing when it is clear that the worse off have plenty.

Quer dizer, para Frankfurt (ou para o suficientarismo, de modo geral), não haveria problema algum em deliberadamente deixarmos de incluir a criança na felicidade extraordinária do restante da cidade, desde que a vida dela, ao contrário do que ocorre na narrativa de Le Guin, fosse suficientemente feliz. A criança não teria direito ao mesmo que os outros ou a um equivalente, mas apenas ao bastante. Se ela tivesse o bastante, os outros habitantes de Omelas poderiam dormir em paz com sua consciência. Contudo, eu não acho o suficientarismo tão óbvio. Precisamos pensar mais um pouco, se é para chegarmos mesmo a essa conclusão.

Imagine que uma mãe tenha dois filhos. Um deles recebe dela até mais do que o bastante, enquanto o outro recebe o triplo que o primeiro, sem qualquer justificativa para o desvio da igualdade. Parece-me claro que o primeiro filho tenha do que se queixar. Assim, o simples fato do menos favorecido ter o bastante (ou até muito) não torna a desigualdade moralmente aceitável em todo e qualquer contexto. Se a desigualdade é aceitável ou não, quer me parecer, depende do contexto da distribuição do ônus e do bônus.

Nesse caso, pensemos o seguinte. Ao descermos das árvores, como animais, estávamos em uma situação normativa parecida à dos dois filhos da mesma mãe, no sentido em que nenhum de nós tinha um direito especial ao que quer que fosse. Mas isso é porque, penso eu, não há quaisquer direitos entre animais. Só existe a lei do mais forte. Quem nunca viu um destes documentários sobre o mundo animal em que um urso ou algo que o valha tem que defender sua caça de uma matilha de lobos ou coisa do gênero? Agora, tal situação de igualdade normativa, nestes termos da vida selvagem, não parece melhor que a situação de Omelas. Os mais fracos podem perder a caça para os mais fortes ou nem conseguir caçar. Talvez, eles até se tornem a presa dos mais fortes.

A nossa racionalidade, como bem pensou Hobbes, cedo ou tarde, nos dirá que a lei da selva é indesejável. Ela não é boa nem sequer para os mais fortes, já que ninguém é absolutamente o mais forte. Você toma a caça de alguém hoje, alguém pode tomar a sua amanhã. Uma hora, você terá que dormir. Os mais fracos podem se unir contra alguém mais forte, etc. Como animais inteligentes, nós temos que evitar essa situação normativa que dá a mesma liberdade a todos para tomarem posse de tudo que bem entenderem. A pergunta de um milhão de dólares é qual seria, então, o arranjo alternativo à lei da selva que seria ditado pela nossa racionalidade.

O que a história nos mostra é que, de fato, houve vários arranjos diferentes para povos diferentes, sendo que sua forma parece ter sido ao menos tão determinada por uma visão encantada da natureza quanto por necessidades materiais e instintos naturais. A nossa pergunta não é como foi na história, ou como nossa genética facilita que seja, mas como a razão diria para ser; se é que ela não ficaria em silêncio, se é que faz mesmo sentido perguntar tal coisa ahistoricamente.

Pois muito bem, o que me parece é que, seja lá qual for a situação normativa que nossa racionalidade possa nos ditar ou que a história possa construir como alternativa à desvantajosa lei da selva, o fato é que alguém na posição da criança de Omelas sempre poderia objetar razoavelmente à sua condição. Afinal, como a situação dessa pessoa seria tão ruim quanto a do mais fraco subjulgado pelo mais forte na selva, qual poderia ser o fundamento de uma obrigação moral dela se sacrificar em nome de vantagens que só os outros adquiriram ao negarem a lei da selva? Em resposta, creio que um utilitarista poderia dizer que a pessoa sacrificada tem essa obrigação, ao menos se a escolha for apenas entre a selva e Omelas, porque, para o utilitarista, essa pessoa não poderia considerar o seu prazer ou suas preferências mais valiosos por serem seus. Assim, ela teria que julgar que o arranjo social que a sacrifica é superior à selva por gerar mais prazer ou satisfazer mais preferências no computo geral, dando o mesmo peso ao prazer ou satisfação de cada um.

Pessoalmente, eu rejeito o utilitarismo justamente por não considerar que seja razoável admitirmos tal obrigação moral de imparcialidade. Não por acaso, foi o melhor de todos os utilitaristas, Henry Sidgwick, quem admitiu a razoabilidade de que demos um peso maior à nossa própria qualidade de vida, dada a separação entre as pessoas. Em outras palavras, perdas na minha vida não são compensadas por um ganho de qualidade na sua, porque não existe continuidade entre nós, como existe na vida de um único ser. Portanto, mesmo se Omelas fosse a única saída da selva, seria uma tarefa e tanto justificarmos moralmente o nosso novo arranjo social diante da criança sacrificada. Agora, pensemos se isso é porque a criança não tem vantagens equivalentes às nossas, porque ela não tem o bastante (seja lá como poderíamos definir o que seria o bastante) ou porque ela não obtém quaisquer vantagens por ter sua liberdade restrita por leis humanas.

Eu me arriscaria a concluir este ensaio dizendo que, realmente, é porque as condições da criança são tão deploráveis que Omelas é uma cidade imoral. Mas esta não é uma conclusão suficientarista. Como já sugeri acima, se é para ser tão miserável quanto na selva, não há por que sair da selva. É isso, a meu ver, que justifica nossa intuição de que o que acontece em Omelas está tão radicalmente errado. Seria moralmente diferente se a criança tivesse mais do que ela poderia ter vivendo pela lei da selva, mesmo no melhor cenário possível, continuando a ter menos que todos os outros da cidade. Em suma, não me parece que, ao sairmos da selva, teríamos que obter todos as mesmas vantagens ou, ao menos, vantagens equivalentes para que o novo arranjo possa ser considerado aceitável para todos.

Portanto, pode-se dizer que minha conclusão fica aquém do suficientarismo, porque ter mais do que poderíamos ter na selva pode significar ainda ter bem menos do que julgaríamos suficiente. Porém, é possível que meu argumento ainda possa ser estendido, ainda que mais na direção do egualitarismo do que do suficientarismo. Eu reconheço que uma civilização pode criar um desequilíbrio de poder tão grande a ponto desse desequilíbrio tornar racional a preferência pela lei da selva, para que não haja tamanha submissão, o que tornaria razoável uma objeção moral a essa civilização.

Como dito acima, pela lei da selva, as relações de poder são flutuantes. Ninguém consegue concentrar todo o poder por muito tempo. Ademais, quando pensamos em termos normativos, e não meramente em força, na selva, ninguém deve obediência a quem quer que seja. A meu ver, isso pode justificar uma objeção por parte de quem, fora da selva, sempre tem que obedecer e se submeter para poder manter sua condição material de vida minimamente acima do que se supõe que ela seria na selva.

Um regime democrático poderia ser justificado nesta linha de raciocínio. Quer dizer, não basta encher a barriga de toda a população. É preciso que uma parte da sociedade não seja destinada a governar a outra. Ademais, para além de um regime democrático autêntico, esse argumento talvez possa justificar até mesmo um arranjo social com mais distribuição de renda e patrimônio do que o necessário para meramente garantir que fiquemos todos acima da escassez que imputaríamos à vida na selva. Afinal, o poder econômico muito acima da média pode trazer com ele um maior poder de barganha com os outros, ao passo que um poder econômico muito abaixo da média pode acarretar a necessidade de maior submissão ao arbítrio alheio para a manutenção da vida em condições minimamente aceitáveis nos termos que estamos imaginando.

Consequentemente, eu diria que estas minhas breves considerações de índole contratualista não são propriamente igualitaristas, já que não repousam diretamente em um apelo à igualdade como único padrão válido de distribuição de bens, ou mesmo suficientaristas, por também não apelarem à premissa que todos devem ter o suficiente. Mas elas sustentam a possibilidade de que uma civilização moralmente defensável deva ser uma em que ninguém é abandonado na miséria e em que há um balanço de poder tal que ninguém precise passar a vida se submetendo aos termos colocados pelos outros para ficar acima da linha da miséria. Quando essas condições não são respeitadas, eu penso que seria válido que os menos beneficiados começassem a pensar em uma virada de mesa, em vez de continuarem seguindo as regras de um jogo inventado para sairmos da selva.

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Andrea Faggion

Sou professora de filosofia. Escrevo sobre temas ligados à ética, à filosofia política e à prática de pesquisa.